OS GUARDIÕES INCOMPREENDIDOS
OS GUARDIÕES INCOMPREENDIDOS
Por Douglas Fersan
Provavelmente uma das manifestações divinas mais difíceis de entender é a dualidade.
O pensamento ocidental, maniqueísta, calcado em valores devidamente distorcidos de
acordo com interesses políticos e econômicos ao longo da História, estabeleceu um padrão
de pensamento em que existem duas forças antagônicas: o bem e o mal, sempre em
constante batalha pelo domínio do mundo e da alma de seus habitantes.
Assim, tudo que não segue a ética e a moral ocidental cristã é imediatamente
associado à sua antítese: as forças maléficas regidas por seres do mal, chamados de
demônios.
Esse tipo de pensamento traz em si um paradoxo, já que o próprio livro sagrado do
cristianismo afirma que Deus é onipresente.
Estando em todas as partes, Deus estaria também nas regiões trevosas da
espiritualidade – regiões que muitos tomaram por costume chamar de inferno.
Então Deus estaria no inferno? Parece uma heresia total fazer tal afirmação, mas sendo
Ele um ser onipresente, deve (ou deveria) estar em todos os lugares.
A crença de um inferno de penas eternas e governado por um ser excepcionalmente
maldoso também faz parte do imaginário cristão e, dentro desse raciocínio contraditório,
não haveria lugar para Deus nessa região – mesmo sendo Ele onipresente.
Dentro da filosofia que norteia o pensamento umbandista, descartamos essa ideia de
inferno. Admitimos a existência de regiões espirituais trevosas, densas, onde se encontram aqueles espíritos que não atingiram a elevação moral esperada, elevação essa que pode ser
conquistada um dia, não necessariamente através de expiações, mas também do trabalho
árduo na espiritualidade. No entanto, nessas regiões ainda reina uma espécie de barbárie
espiritual, já que os valores morais de seus habitantes não são os mais elevados,
necessitando assim de alguém que controle suas ações, não permitindo que outras esferas
(como a dos encarnados, por exemplo) sejam alvos dos ataques e obsessão desses espíritos.
É nesse contexto que começamos a entender o papel dos Exus, os guardiões tão
incompreendidos e injustiçados, que atuam como agentes da Lei e da Ordem dentro desse
princípio da dualidade divina.
Entender Exu é entender o próprio funcionamento da Lei Maior. Antes de qualquer
coisa é preciso saber a diferença entre o Orixá Exu e o Exu catiço, da Umbanda. (Catiço aqui
quer dizer apenas o que entendemos por “entidade” ou “guia”)
A palavra Exu, que significa
“Esfera”, remete aos cultos africanos e ao Orixá de mesmo nome.
Como bem sabemos, por diversos fatores históricos, houve no Brasil um processo
chamado sincretismo, através do qual as divindades africanas foram associadas aos santos
católicos. Assim, Iansã, por exemplo, que é a divindade dos raios e das tempestades, foi
sincretizada com Santa Bárbara, já que essa santa também é associada aos raios e trovões.
Ogum, o Orixá guerreiro, foi sincretizado com São Jorge, o patrono militar dos
católicos, e assim por diante. No entanto, com o Orixá Exu houve, ainda dentro do
sincretismo, um processo de demonização. Sendo Exu a divindade ligada à fertilidade, à
sexualidade e à vitalidade – inclusive carregando, em suas representações, um cetro em
forma de falo – e
tendo uma personalidade um tanto rebelde, como nos contam as itans (lendas africanas
dos Orixás), não tardou para que fosse associado ao demônio bíblico/católico.
Assim, desde o princípio, Exu foi temido e provavelmente gostou disso, levando-se em
conta seu caráter irreverente.
Apesar da confusão em torno da natureza de Exu, não podemos esquecer e nem
desprezar sua importância dentro do panteão africano e de seu funcionamento, já que ele
atua como “mensageiro” ou “intermediário” entre os homens e os Orixás.
Nos cultos de Umbanda também encontramos Exu, porém não na figura de um Orixá, e
sim de um espírito (entidade), um desencarnado, que viveu em Terra e procura, através do
trabalho na espiritualidade, alcançar o progresso moral.
Ainda que associado a figuras demoníacas, o Exu da Umbanda é um valoroso
trabalhador que, indiferente a essas interpretações calcadas em visões preconceituosas,
segue perseverante no cumprimento de sua tarefa.
O papel do Exu numa gira de Umbanda é de fundamental importância, realizando a
segurança do terreiro. Imaginem quantos kiumbas (espíritos trevosos e zombeteiros)
atacariam uma tenda de Umbanda a fim de atrapalhar seus trabalhos, se não fosse a
presença dos Exus, trancando a sua passagem.
Em casos de descarregos, também são os Exus os principais agentes, pois cabe a eles a
tarefa de encaminhar cada espírito, seja um pobre sofredor desorientado, ou um perigoso
obsessor ao seu local de merecimento e/ou tratamento.
Exu também é o agente da justiça kármica, sendo sua tarefa levar a cada um o que lhe
é de direito ou merecimento – por isso também a confusão em torno de seu caráter, já que
ao coração humano é muito fácil aceitar o que é agradável, mas muito difícil entender que
os revezes da vida muitas vezes são resultado de nossas próprias ações.
Ao contrário daquilo que falam sobre eles, os Exus são fiéis amigos, sempre dispostos a
ajudar seus protegidos,
Mas também exigindo uma conduta reta deles, pois são extremamente rigorosos.
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