Preto Velho Fala Com Kardec
Preto Velho Fala Com Kardec
por Alexandre Cumino
Não podemos dizer que a atitude dos senhores presentes na famosa sessão espírita do dia 15 de
Novembro de 1908 seria aprovada por Allan Kardec, ou que estariam embasados na filosofia codificada
por ele, no momento em que expulsam os espíritos de ex escravos negros da mesa de comunicações,
na qual se manifestou pela primeira vez o Caboclo das Sete Encruzilhadas pela mediunidade de Zélio de
Moraes.
Com certeza Kardec não teria a mesma atitude.
Uma prova de que Kardec, no mínimo, ouviria o que o Preto-velho e o Caboclo têm a dizer é o
diálogo travado entre Kardec e “Pai César”, um negro nascido na África e levado para Louisiana
quando tinha 15 anos.
Esta entidade lembra muito as características que identificam um “Preto velho”, embora lhe falte a ideologia umbandista inseparável da entidade de Umbanda, no entanto,
não foi tratado com diferença por Kardec, muito menos discriminação, como podemos ver abaixo:
PRETO VELHO FALA COM KARDEC
Pouca gente sabe, mas numa das reuniões realizadas na Sociedade Parisiense de Estudos
Espíritas, Allan Kardec evocou um Espírito que, segundo as terminologias da cultura brasileira,
poderia ser classificado como um “preto-velho”.
Esse encontro, narrado pelo próprio Kardec nas
páginas da sua histórica “Revista Espírita” (Revue Spirite), de junho de 1859, aconteceu na reunião
do dia 25 de março daquele mesmo ano.
Pai César – este é o nome do Espírito comunicante – havia
desencarnado em 8 de fevereiro também de 1859 com 138 anos de idade – segundo davam conta as
notícias da época –, fato este que certamente chamou a atenção do Codificador, que logo se
interessou em obter, da Espiritualidade, mais informações sobre o falecido, que havia encerrado a
sua existência física perto de Covington, nos Estados Unidos.
Pai César havia nascido na África e tinha
sido levado para a Louisiana quando tinha apenas 15 anos.
Antes de iniciar a sessão em que se faria presente Pai César, Allan Kardec indagou ao Espírito
São Luís, que coordenava o trabalho, se haveria algum impedimento em evocar aquele companheiro
recém-chegado ao Plano Espiritual. Ao que respondeu São Luís que não, prontificando-se, inclusive, a
prestar auxílio no intercâmbio. E assim se fez.
A comunicação, contudo, mal iniciada, já conclamou os
participantes do grupo a muitas reflexões. Na sua mensagem, Pai César desabafou, expondo a todos
as mágoas guardadas em seu coração, fruto dos sofrimentos por que passara na Terra em função do
preconceito que naqueles dias grassava em ainda maior escala do que hoje. E tamanhas eram as
feridas que trazia no peito que chegou a dizer a Kardec que não gostaria de voltar à Terra novamente
como negro, estaria assim, no seu entendimento, fugindo da maldade, fruto da ignorância humana.
Quando indagado também sobre sua idade, se tinha vivido mesmo 138 anos, Pai César disse não ter
certeza, fato compreensível, como esclarece o Codificador, visto que os negros não possuíam
naqueles tempos registro civil de nascimento, sobretudo os oriundos da África, pelo que só poderiam
ter uma noção aproximada da sua idade real.
A comunicação de Pai César certamente ajudou Kardec, em muito, a reforçar as suas teses
contra o preconceito, o mesmo preconceito que o levou a fazer, dois anos depois, nas páginas da
mesma “Revista Espírita”, em outubro de 1861, a declaração a seguir, na qual deixou patente o papel
que o Espiritismo teria no processo evolutivo da Humanidade, ajudando a pôr fim na escuridão que
ainda subjuga mentes e corações:
“O Espiritismo, restituindo ao espírito o seu verdadeiro papel na
criação, constatando a superioridade da inteligência sobre a matéria, apaga naturalmente todas as
distinções estabelecidas entre os homens segundo as vantagens corpóreas e mundanas, sobre as quais
só o orgulho fundou as castas e os estúpidos preconceitos de cor.”
O texto que acabamos de ler acima foi disponibilizado por nosso irmão Roberto (Mestre Azul) no
site: http://mestreazul.blogspot.com/2008/05/umbanda-preto-velho-kardec.html, consultado na data
de 21 de Fevereiro de 2009, neste mesmo endereço eletrônico o irmão Mestre Azul cita sua fonte:
Boletim n° 2090, 19/04/2008, SERVIÇO ESPÍRITA DE INFORMAÇÕES, Lar Fabiano de Cristo, Rio de
Janeiro.
Este diálogo pode ser confirmado no livro “Tesouros da Revista Espírita de Allan Kardec”, Ed.
FEESP, 2008, pp.101- 102.
Abaixo coloco apenas um fragmento do texto original:
Kardec: Em que o senhor utiliza seu tempo, agora?
Pai César: Procuro me esclarecer e pensar em que corpo seria melhor eu nascer de novo.
Kardec: Quando estava vivo, o que achava dos brancos?
Pai César: Achava que eram bons, mas tinham orgulho de uma brancura que não é mérito deles.
Kardec: O senhor disse que estava procurando um corpo para reencarnar; vai escolher um corpo
branco ou negro?
Pai César: Branco, porque o desprezo das pessoas me faz sofrer.
Podemos observar um espírito que na última encarnação foi um negro, desencarnado já com
idade suficiente para considerar-se ancião, um “negro velho”, se comunicando com Kardec e embora
para muitos “negro-velho” ou “negro-ancião” e “preto-velho” seja a mesma coisa, para Umbanda
“preto-velho” se insere num contexto doutrinário. Reflete um arquétipo de sabedoria, iluminação e
superação de todos os obstáculos que a vida lhe ofereceu.
Preto-velho não é o que “sofreu” e se
“amargurou” e sim aquele que esteve e está acima de todo o sofrimento.
“Preto-velho” é aquele que
representa a vitória acima de todos os grilhões que a vida nos impõe, “preto-velho” é aquele que nos
ensina que maiores são os grilhões da ilusão que nos prendem ao ego e à vaidade de crer que uma raça
possa ser superior à outra. “Preto-velho” ensina que quando o “branco” lhe colocou correntes estava
acorrentando a si mesmo nas leis inexoráveis de causa e efeito, que mais dia menos dia haveria de
pesar na alma dos “senhores”. “Preto-velho” é aquele que ensina que aguentar firme e na fé as
“chibatadas” que a vida nos dá confere valores de uma força espiritual que em nada se compara com
a força física.
“Preto-velho” é “símbolo” de Umbanda, figura que por si só já exerce um impacto
doutrinário. Pois é este humilde, ex escravo, que foi acorrentado e muito apanhou nos troncos de
engenho que está ali para ouvir nossas queixas sobre a vida. É da boca do velho de fala baixa e mansa
que vamos colher a essência de sabedoria para a vida.
Diante deste “arquétipo”, mesmo em completo
silêncio, somos levados à reflexão sobre nós mesmos e nossa postura diante da vida, repensamos o que
costumamos chamar de “problemas”, encontrando no “modelo” “preto-velho” um caminho que
transcende a personalidade daquele espírito para firmar-se como elemento ritualístico, a forma pela
qual estas entidades “escolheram” para manifestar-se na religião.
Seguindo os velhos iluminados, os
“originais” e “ancestrais” “pretos-velhos”, espíritos missionários que pediram, escolheram e foram
escolhidos para nascer em meio à escravidão, aqui no Brasil, com a finalidade de trazer um pouco de
luz a tantas almas presas no cativeiro material e espiritual. Estes milhares de espíritos: “Pai José”,
“Pai João”, “Pai Benedito”, “Pai Antônio” ou “Vovó Maria” etc., com nomes cristãos de escravos
batizados, seguem o modelo daqueles que junto aos “Caboclos” fundaram a Umbanda e nela definiram
arquétipos (“Preto-velho” e “Caboclo”) que são em si mesmos a figura de seus iluminados fundadores.
Mais tarde viriam outros arquétipos como ciganos, baianos, boiadeiros, marinheiros e etc. nesta
Umbanda que tem um perfil altamente “inclusivo”, que não exclui nada nem ninguém.
Fica assim uma reflexão sobre o que é o “preto-velho” enquanto elemento, valor e símbolo
indissociável da cultura e religião umbandista.
“Preto-velho” expressa muito mais que “raça negra” e
“idade avançada”, é o identificador de um dos elementos formadores da Umbanda.
Nem todo “preto velho” foi um velho negro, mas todos que assim se manifestam optaram por esta forma de
manifestação, portanto que não se confunda opção com falta de opção.
Por mais que especulemos
nunca sabemos em profundidade com quem nos comunicamos no mundo espiritual; além de um nome,
de seu perfil e forma plasmada; e é por isso que vale sempre avaliar o teor das mensagens e a
vibração própria de cada entidade.
Por este fundamento é que Gabriel de Malagrida em sua
memorável manifestação primeira teria dito: "Se é que preciso de um nome, seja então Caboclo das
Sete Encruzilhadas, porque não haverá caminhos fechados para mim".
Já surge com nome simbólico e
explicando o simbolismo do mesmo.
Os guias espirituais e mentores na Umbanda se valem da forma de apresentação como recurso
psicológico e emocional para alcançarem certo objetivo com relação a quem lhes procura, assim a
figura “preto-velho”, como as outras, exerce impacto doutrinário, de valores imprescindíveis para a
construção da identidade umbandista.
Este perfil “inclusivo” da Umbanda pode ser verificado logo em seus primeiros momentos nas palavras do Caboclo das Sete Encruzilhadas
quando afirma que: “Com quem sabe mais aprenderemos, a quem sabe menos ensinaremos e a ninguém vamos dar as costas”.
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