Pomba-gira da Umbanda
Pomba-gira da Umbanda
por Rubens Saraceni
Na Umbanda, a entidade espiritual que se manifesta incorporada em suas médiuns está
fundamentada num arquétipo desenvolvido a partir da entidade Bombogira, originária do culto Angola.
Nos cultos tradicionais oriundos da Nigéria, não havia a entidade Pomba-gira ou um Orixá que a
fundamentasse.
Mas, quando da vinda dos nigerianos para o Brasil (isto por volta de 1800), estes aqui se
encontram com outros povos e culturas religiosas e assimilam a poderosa Bombogira angolana que,
muito rapidamente, conquistou o respeito dos adoradores dos Orixás.
Com o passar do tempo, a formosa e provocativa Bombogira conquistou um grau análogo ao de
Exu e muitos passaram a chamá-la de Exu Feminino ou de mulher dele.
Mas ela, marota e astuta como só ela é, foi logo dizendo que era mulher de sete exus, um para
cada dia da semana, e, com isso, garantiu sua condição de superioridade e de independência.
Na verdade, num tempo em que as mulheres eram tratadas como inferiores aos homens e eram
vítimas de maus tratos por parte dos seus companheiros, que só as queriam para lavar, passar,
cozinhar e cuidar dos filhos, eis que uma entidade feminina baixava e extravasava o “eu interior”
feminino reprimido à força e dava vazão à sensualidade e à feminilidade subjugadoras do machismo,
até dos mais inveterados machistas.
Pomba-gira foi logo no início de sua incorporação dizendo ao que viera e construiu um arquétipo
forte, poderoso e subjugador do machismo ostentado por Exu e por todos os homens, vaidosos de sua
força e poder sobre as mulheres.
Pomba-gira construiu o arquétipo da mulher livre das convenções sociais, liberal e liberada,
exibicionista e provocante, insinuante e desbocada, sensual e libidinosa, quebrando todas as
convenções que ensinavam que todos os espíritos tinham que ser certinhos e incorporarem de forma
sisuda, respeitável e aceitável pelas pessoas e por membros de uma sociedade repressora da
feminilidade.
Ela foi logo se apresentando como a “moça” da rua, apreciadora de um bom champanhe e de
uma saborosa cigarrilha, de batom e de lenços vermelhos provocantes.
“O batom realça os meus lábios, o rouge e os pós ressaltam minha condição de mulher livre e
liberada de convenções sociais”.
Escrachada e provocativa, ela mexeu com o imaginário popular e muitos a associaram à mulher
da rua, à rameira oferecida, e ela não só não foi contra essa associação como até confirmou:
“É isso
mesmo”!
E todos se quedaram diante dela, de sua beleza, feminilidade e liberalidade, e como que
encantados por sua força, conseguiram abrir-lhe o íntimo e confessarem-lhe que eram infelizes porque
não tinham coragem de ser como elas.
Aí punham para fora seus recalques, suas frustrações, suas mágoas, tristezas e ressentimentos
com os do sexo oposto.
E a todos ela ouviu com compreensão e a ninguém negou seus conselhos e sua ajuda num campo
que domina como ninguém mais é capaz.
Sua desenvoltura e seu poder fascinam até os mais introvertidos que, diante dela, se abrem e
confessam suas necessidades.
Quem não iria admirar e amar arquétipo tão humano e tão liberalizado de sentimentos
reprimidos à custa de muito sofrimento?
Pomba-gira é isto. É um dos mistérios do nosso divino criador que rege sobre a sexualidade
feminina. Critiquem-na os que se sentirem ofendidos com seu poderoso charme e poder de fascinação.
Amem-na e respeitem-na os que entendem que o arquétipo é liberador da feminilidade tão
reprimida na nossa sociedade patriarcal onde a mulher é vista e tida para a cama e a mesa.
Mas ela foi logo dizendo:
“Cama, só para o meu deleite e, mesa, só se for regada a muito
champanhe e dos bons!”
Com isso feito, críticas contrárias à parte, o fato é que o arquétipo se impôs e muita gente já foi
auxiliada pelas “Moças da Rua”, as companheiras de Exu.
A espiritualidade superior que arquitetou a Umbanda sinalizou a todos que não estava fechada
para ninguém e que, tal como Cristo havia feito, também acolheria a mulher infiel, mal amada,
frustrada e decepcionada com o sexo oposto e não encobriria com uma suposta religiosidade a
hipocrisia das pessoas que, “por baixo dos panos”, o que gostam mesmo é de tudo o que a Pomba-gira
representa com seu poderoso arquétipo.
Aos hipócritas e aos falsos puritanos, pomba-gira mostra-lhes que, no íntimo, ela é a mulher de
seus sonhos... ou pesadelos, provocando-o e desmascarando seu falso moralismo, seu pudor e seu
constrangimento diante de algo que o assusta e o ameaça em sua posição de dominador.
Esse arquétipo forte e poderoso já pôs por terra muito falso moralismo, libertando muitas
pessoas que, se Freud tivesse conhecido, não teria sido tão atormentado com suas descobertas sobre a
personalidade oculta dos seres humanos.
Mas para azar dele e sorte nossa, a Umbanda tem nas suas Pombas-giras ótimas psicólogas que,
logo de cara, vão dando o diagnóstico e receitando os procedimentos para a cura das repressões e
depressões íntimas.
Afinal, em se tratando de coisas íntimas e de intimidades, nesse campo ela é mestra e tem
muito a nos ensinar.
Seus nomes, quando se apresentam, são simbólicos ou alusivos.
- Pomba-gira das Sete Encruzilhadas;
- Pomba-gira das Sete Praias;
- Pomba-gira das Sete Coroas;
- Pomba-gira das Sete Saias;
- Pomba-gira Dama da Noite;
- Pomba-gira Maria Molambo;
- Pomba-gira Maria Padilha;
- Pomba-gira das Almas;
- Pomba-gira dos Sete Véus;
- Pomba-gira Cigana etc.
O simbolismo é típico da Umbanda porque na África ele não existia, e o seu arquétipo anterior
era o de uma entidade feminina que iludia as pessoas e as levavam à perdição. Já na Umbanda, é o
espírito que “baixa” em seu médium e, entre um gole de champanhe e uma baforada de cigarrilha,
orienta e ajuda a todos os que as respeitam e as amam, confiando-lhes seus segredos e suas
necessidades. São ótimas psicólogas. E que psicólogas!
“Salve as Moças da Rua”!
Fonte: Os Arquétipos da Umbanda – Rubens Saraceni – Ed. Madras
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