Tráfico de Escravos, Culto de Orixá e Candomblé Baiano
Tráfico de Escravos, Culto de Orixá e Candomblé Baiano
O texto abaixo é uma adaptação livre de parte editada do texto original de Pierre Verger, a partir do título
Notas Sobre o Culto aos Orixás e Voduns.
Pierre Verger. São Paulo: Edusp. Recomendo a quem queira se
aprofundar no assunto, tanto o título citado quanto Orixás, do mesmo autor, pela Editora Corrupio.
Os primeiros escravos foram introduzidos no Novo Mundo em 1502, em virtude de um edito real
que permitiu o transporte de escravos negros da Espanha para Hispaniola (que, mais tarde, se tornou
República Dominicana e Haiti), pois a escravidão não existia na Península Ibérica. O costume outrora
estabelecido pelos mouros havia subsistido entre os cristãos, e o tráfico implantou-se entre Sevilha, em
particular, e o litoral norte e oeste da África.
Esses negros, importados para as Antilhas, eram destinados aos trabalhos nas minas, e o Padre
Bartolomé de las Casas tendo observado “os bons resultados” obtidos com estes escravos africanos e
penalizando-se com o destino dos índios, que não resistiam aos trabalhos agrícolas, “imaginou um meio
engenhoso de salvar a vida de seus catecúmenos e, ao mesmo tempo, salvar a alma dos outros”: incitou
a coroa da Espanha a autorizar o Tráfico dos Negros.
No Novo Mundo, os conquistadores espanhóis e os Bandeirantes portugueses (aos quais, mais
tarde, se juntaram os colonos ingleses, franceses e holandeses) cristianizavam os índios, “para a
salvação de suas almas”, como era devido, e procuravam fazê-los trabalhar em suas fazendas,
engenhos, e minas.
É difícil avaliar o numero total de escravos assim transportados, após a “filantrópica” iniciativa do
Padre Bartolomé de las Casas.
As cifras variam muito. A Enciclopédia Católica fala de doze milhões, e
outras fontes chegam a mencionar cinquenta milhões.
Abaixo um texto adaptado do original, Instituto Orumilá de Cultura, Dados levantados por Julvan
Moreira de Oliveira em seu projeto de pesquisa apresentado como parte dos exames de seleção ao
Programa de Mestrado em Educação, na Faculdade de Educação da USP, em outubro de 1995.
Durante a escravidão todos os cativos deveriam ser batizados segundo determinação da Coroa
Portuguesa, o que atendia a relação entre o Governo Português e a Igreja Católica Apostólica Romana.
O Pe. Antônio Vieira, em seus Sermões (XI e XXVII) afirma que a África é o inferno donde DEUS se
digna retirar os condenados para, pelo purgatório da escravidão nas Américas, finalmente alcançarem
o paraíso.
O mesmo Pe. Antônio Vieira, no Sermão XIV do Rosário à Irmandade dos Pretos de um
Engenho, elaborado em 1633, ao comentar o texto de São Paulo I Cor 12,13 - o entende no sentido de
que os africanos, sendo batizados antes do embarque da África à América, deviam agradecer a DEUS
por terem escapado da terra natal, onde viviam como pagãos entregues ao poder do diabo. E diz: todos
os de lá, como vós credes e confessais, vão para o inferno onde queimam e queimarão durante toda a
eternidade (VIEIRA, Antônio, 1981).
Em outro sermão ainda, Vieira diz que, para ele, o cativeiro do
africano na América não é senão um meio cativeiro, pois atinge só o corpo. A alma não está mais
cativa, ela se libertou do poder do diabo que governa a África e o escravo no Brasil deve tentar
preservar essa liberdade da alma, para não cair de novo sob o domínio dos poderes que reinam na
África (Idem).
Em 1873, uma oração pela conversão dos povos da África Central para a Igreja Católica, escrita
pela Secretaria da Sagrada Congregação das Indulgências, dizia assim: Rezemos pelos povos muito
miseráveis da África Central que constituem a décima parte do gênero humano, para que DEUS
onipotente finalmente tire de seus corações a maldição de Caim e lhes dê a benção que só podem
conseguir em Jesus Cristo, nosso DEUS e Senhor: Senhor Jesus Cristo, único Salvador de todo o gênero
humano, que já reinas de mar a mar e do rio até os confins da terra, abre com benevolência o teu
sacratíssimo coração mesmo às almas mui miseráveis da África que até agora se encontram nas trevas e
nas sombras da morte, para que pela intercessão da puríssima Virgem Maria, tua Mãe imaculada e de
São José, tendo abandonado os ídolos, se prostrem diante de Ti e sejam agregados à tua Santa Igreja.
O domingo foi dado como dia “livre” aos escravos para exercerem sua cultura de origem, abaixo
vejamos a justificativa desta atitude por parte da monarquia. É um texto do Conde dos Arcos, séc. XIX:
Batuques olhados pelo Governo são uma cousa, e olhados pelos particulares da Bahia são outra diferencialíssima. Estes olham para os batuques como para um ato ofensivo dos direitos dominicais, uns
porque querem empregar seus escravos em serviço útil ao domingo também, e outros porque os
querem ter naqueles dias ociosos a sua porta, para assim fazer parada de sua riqueza. O governo,
porém, olha para os batuques como para um ato que obriga os negros, insensível e maquinalmente, de
oito em oito dias, a renovar as ideias de aversão recíproca que lhes eram naturais desde que nasceram,
e que, todavia se vão apagando pouco a pouco com a desgraça comum; ideias que pode considerar-se
como o garante mais poderoso da segurança das grandes cidades do Brasil, pois que se uma vez as
diferentes nações da África se esqueceram totalmente da raiva com que a natureza as desuniu, então
os de Agomés, vierem a ser irmãos com os Nagôs, os Geges com os Haussas, os Tapas com os Sentys, e
assim os demais; grandíssimo e inevitável perigo desde então assombrará e desolará o Brasil. E quem
duvidará que a desgraça tem o poder de fraternizar os desgraçados? Ora, pois, proibir o único ato de
desunião entre os negros vem a ser o mesmo que promover o governo indiretamente a união entre eles,
do que não posso ver se não terríveis consequências.
O rei do Daomé enviou, por volta de 1795, dois embaixadores à Bahia com a finalidade de propor
aos portugueses um tratado de comércio que garantisse ao porto de Ajuda (Ouidah) a exclusividade de
fornecimento de escravos.
Essa oferta não foi levada em consideração “porque não convinha que nesta Capitania (Bahia) se
reunisse um número por demais grande de escravos da mesma Nação do que poderiam resultar
consequências perniciosas”.
Esses pressentimentos não eram vãos, pois houve, na Bahia, inúmeras revoltas: as Haussas, em
1807 – 1813, seguida das revoltas dos Nagôs Malê, que se deram entre 1826 e 1835. Eram todos eles
Muçulmanos.
As consequências destas sublevações foram limitadas, pois outras nações de Negros não seguiram
o movimento. Tratava-se, aliás, de uma guerra de religião, a “Guerra Santa”, pois se dirigia não
somente contra os Senhores Brancos, mas, também contra os negros crioulos, convertidos ao
catolicismo, e contra os negros “animistas”.
Amaury Talbot assinala que em “1846, devido à nova política de livre-escambo e a nova lei sobre
o açúcar, o mercado britânico estava inundado com o açúcar do Brasil e de Cuba, produzido pela labuta
dos escravos, e que, em consequência o tráfico dos escravos recebeu grande estimulo”.
Este estímulo econômico trouxe cativos Yorubá em grande numero para o Brasil e para Cuba, que,
conforme vimos mantinham relações constantes com a Costa dos Escravos.
Era época das guerras insistentes que Guezo, Rei do Daomé, movia contra seu vizinho o Rei dos
Yorubá, outrora poderoso, mas agora enfraquecido pelas invasões dos fulani.
Guezo, neste período final de escravidão, fez cativa toda a nação de Keto, que entre os NagôYorubá era onde havia o culto ao Orixá Oxóssi. Foi o perfil desta nação que marcou intensamente o
perfil da religiosidade baiana, que recebeu boa parte de tal nação.
Além disso, Brasil e Cuba eram os únicos países para onde ainda era possível enviar prisioneiros de
guerra que se haviam tornado escravos.
A escravidão fora abolida em toda a América do Sul, com
exceção do Brasil, e nas Antilhas, com exceção de Cuba, em Porto Rico. Quase não havia comércio
direto com Estados Unidos.
Uma distribuição dos negros por “Nação”, baseada no contrato de compra e venda de escravos,
entre 1838 e 1860, extraídos do arquivo municipal da cidade de Salvador (Bahia), indica as seguintes
cifras:
3060 escravos de origem Sudanesa:
Nagô (2049), Djedje(286), Mina(117), Calabar (39), Benim (27) e Cachéu (12).
460 escravos de origem Banto:
Angola (260), Cabinda (65), Congo (48), Benguela (29), Gabão (5), Cassange (4) e Moçambique
(42).
(Os escravos das Nações que embarcavam no Porto da Costa do Ouro e dos Escravos eram
denominados Sudaneses e os que embarcavam no Porto da Costa de Angola eram denominados Bantos.
).
Estes são os números do ultimo período de tráfico negreiro, à Bahia. Desta forma fica claramente
explicada a predominância da Cultura Nagô, a língua Yorubá e consequentemente o Culto de Orixá
característico na região.
Do Culto de Nação ao Candomblé
por Alexandre Cumino
O ritual cerimonial dos Nagô (e, em menor grau, o dos djedje) é aquele que, na Bahia, melhor
conservou seu caráter africano e influenciou fortemente o das outras “Nações”.
Voltando aos batuques aprovados pelo Conde dos Arcos, a constituição destas sociedades de
divertimentos teve como resultado mais claro manter o culto às Divindades Africanas. Todos estes
Negros haviam sido batizados, mas permaneciam ligados a suas antigas diferenças. Essas associações lhe
permitiam manifestá-las às claras. Suas cantigas e suas danças, que aos olhos dos Senhores pareciam
simples distrações de negros nostálgicos, eram, na realidade reuniões nas quais eles evocavam os
Deuses da África.
Quando o Senhor passava ao lado de um grupo no qual eram cantadas as forças e o poder vingador
de Xangô, o trovão, ou de Oyá, divindade das tempestades e do rio Níger, ou Obatalá, divindade da
criação, ele perguntava o significado daquelas cantigas, e imagina-se a resposta dos escravos:
“Yoyo, adoramos a nossa maneira e em nossa língua São Gerônimo, Santa Barbara ou o Senhor do
Bom Fim”.
Cada Orixá havia sido sincretizado por um santo católico. Com o tempo houve uma evolução e o
sincretismo afro-católico que, originariamente, era apenas máscara, para ocultar o Culto de Orixá,
tornou-se mais sincero.
As novas gerações “crioulas” já consideram que “santo” e “orixá” são um só,
que apenas o nome muda, mas que, de acordo com o lugar ou momento, é bom dirigir-se a ele em latim
ou em uma língua da África. No entanto mais recentemente surgiu um movimento junto aos Candomblés
Baianos para retirar o sincretismo, desassociar e descristianizar o Culto de Matriz Africana. Um dos
“slogans” do movimento era:
“Santa Bárbara não é Iansã”.
Candomblé é um nome dado na Bahia às cerimônias Africanas. Ele representa para seus adeptos as
tradições dos seus antepassados vindos de um País distante, fora de alcance e quase fabuloso. Trata-se
de tradições mantidas com tenacidade, e que lhes deram a força de continuar sendo eles mesmos,
apesar do preconceito e desprezo de que eram objeto suas religiões, além da obrigação de adotar a
religião de seus senhores.
O Candomblé torna-os membros de uma coletividade familiar, espiritual, para a qual são
atavicamente preparados.
Essa forma de organização social proporcionava-lhes uma segurança e uma estabilidade que nem
sempre encontraram em nossa civilização.
Existem poucos países onde os descendentes dos negros libertos da escravidão tenham
conservado, como na Bahia, o orgulho de origem Africana e não tenham procurado dar uma impressão
de ascensão social, renegando abertamente suas tradições adotando aparentemente as da classe
dominante.
Existe também um sincretismo, associação e relação entre Orixás (Nagôs-Yorubá), Voduns
(Dgedge) e Inquices (Angola-Quimbundo), podemos até dizer que sincretismo entre divindades de
diferentes culturas já era alço comum em algumas culturas africanas, como a Bantu ou a Dgedge.
Os
Nagôs são mais fechados e reservados. Por isso talvez os outros é que se “aculturaram” com seus
valores. Na falta de culto as divindades Vodum ou Inquice, logo os mesmos já identificavam os mesmos
por meio de Orixás análogos, crendo ser o mesmo com nomes diferentes.
Vejamos abaixo uma tabela de
comparação e assimilação dos mesmos:
Djeje (Divindade =
Vodum)
Angolano (Divindade =
Inquice)
Nagôs (Divindade =
Orixá)
Legbá Aluvaiá Exu
Gu Nkosi-Mukumbe Ogum
Sapata Kaviungo Omulu
Hoho Vunji Ibeji
Age Kabila Oxossi
Sobo Nzaze-Loango Xangö
Aziri Kisimbi Oxum
Lisa Lemba Oxala
Dan Angorö Oxumaré
Manú (Deus) Zambi (Deus) Olorum (Deus)
Bibliografia: Notas sobre o culto aos Orixás e Voduns (Pierre Verger / Edusp), Orixás (Pierre Verger
/ Corrupio), O Candomblé da Bahia (Roger Bastide / Companhia das Letras), Os Nagô e a Morte (Joana
Elbein dos Santos / Editora Vozes)
Obs.: As cerimonias africanas são denominadas macumba no Rio de Janeiro, candomblé, na Bahia,
xangô no Recife, tambor de mina em São Luiz do Maranhão.
Consultar, sobre estas questões, os
trabalhos de Manuel Querino, Nina Rodrigues, Artur Ramos, Édison Carneiro, Donald Pierson, Gonçalves
Fernandes e Roger Bastide.
Nota de Pierre Verger.
Geografia dos Orixás
autoria desconhecida
Não costumo me servir de nada que tenha autoria desconhecida, no entanto considero este texto
muito bom, e teria o maior prazer em reconhecer a autoria do mesmo (Alexandre Cumino):
Se na África o culto dos orixás está circunscrito a determinadas regiões ou cidades, no Brasil a
coisa foi totalmente diferente. Lá, existe uma localidade especificamente destinada ao culto de
determinada divindade, contendo a mesma história, sua origem, seus mitos, e seus ritos. Assim, Ifé, na
Nigéria é o centro da criação para o mundo nagô-iorubá, é a capital do mundo mítico e mágico negro, é
o Iluaiye de que tanto falam os negros da diáspora. Em Ile-Ife está o culto a Oduduwa, fundador dos
povos iorubás, assim como Obatala ou Osala, o Deus que criou o homem. Em Oyo está Sango, que foi
seu quarto rei e é o deus do fogo e do trovão, sendo um dos seus antecessores, o seu pai Oranyan, que
foi o primeiro rei de Oyo.
Em Ire, Ogun, deus do ferro e da guerra, invadiu o dominou a cidade tornando-se rei com o nome
de Ogun Onire. Em Abeokuta corre a tradição de lá ter nascido Yemoja, bem como a de que Oyo ou
Iansã para os brasileiros, ter nascido em Ira. Er inlé, mais conhecido como Inlé e Ibualama, tem o seu
culto em Ilobu, além de ter o rio com seu nome.
De Ilesa recebemos grande herança. De lá veio o culto
a Logun Edé, cujo sacerdote mais velho e mais importante do Brasil é o babalorisa. Eduardo
Mangabeira, popularmente conhecido como Eduardo Ijesa, hoje com 99 anos de idade. De Ikija, perto
de Ijebu surgiu Ososi, que veio a ser o primeiro rei de Ketu, cidade que depois foi dominada, destruída
e anexada ao Dahomey, hoje República Popular de Benin.
De seu culto nada mais resta a não ser na diáspora, especificamente na Bahia. Osun tem o seu
culto principal em Osogbo, além das cidades de Oboto, Akpara, Ipetu, Ijimu, dentre outras. Osala andou
muito. Saiu de Ife peregrinando por diversas regiões, tomando nomes diferentes, ao tempo em que se
torna rei dos referidos locais.
Em Ejigbo tomou o nome de Osagiyan, em Ifon, Orisa Olofun e assim por
diante. Também chegou até a Bahia o culto a Iya Mapo, patrona da vagina, por ser através dela que
todos os seres humanos vêm ao mundo, daí a sua sacralização.
Iya Mapo é muito venerada e cultuada
em Igbeti. Existe um itan Ifa ( história de Ifa), pertencente ao odu Osa Meji (10), que conta como foi
colocada a vagina no devido lugar da mulher, até então colocada em vários lugares do corpo, menos no
que é hoje. Para isso estiveram envolvidos não só o Odu osa meji, mas também Esu e Iyami Osoronga,
num ebó feito com duas bananas e um pote, cabendo a Esu a sua localização atual, bem como a do
pênis do homem do qual Esu é o dono.
Quem viaja pela Nigéria, encontrará enormes pênis esculpidos
em pedra pelas estradas, em reverência a Esu. Na Bahia, o Esu da porteira do Ase Ile Opo Aganju é
assentado com grande pênis esculpido em madeira [...]
[...] Nos rios se fazem oferendas e ritos para Osun, divindade do rio Osun, com cerimônias nas
suas margens, em Osogbo.
Yemoja, no rio Ogun, Yewa no rio Yewa, Erinle, no rio Erinle. No mar, Iya
Olokun, que é sua dona, tem o seu rito como na Nigéria, onde existem esculpidas suas cabeças. Na
Bahia se devota grande respeito a essa divindade. Não se entra no mar sem lhe saudar e pedir licença,
dizendo: Iya Olokun to to hun, Iya Olokun gba mi o, Iya Olokun ago "Mãe Olokun extremamente
respeitada, Mãe Olokun me valha, Mãe Olokun licença", após o que se entrar no mar... As ruas, os
caminhos, as encruzilhadas pertencem a Esu.
Nesses lugares se invoca a sua presença, fazem-se
sacrifícios, arreiam-se oferendas e se lhe fazem pedidos [...]
“Sou zelador-de-santo”
Um dos mais respeitados pais-de-santo do Brasil, Agenor Miranda Rocha emite opiniões corajosas sobre
o candomblé.
por Gladys Pimentel
A reabertura dos terreiros de candomblé no feriado religioso de Corpus Christi traz, todo ano, à
Bahia um dos mais queridos e respeitados sacerdotes do povo de santo, o oluwô (dono dos segredos)
Agenor Miranda Rocha, 93 anos. No último dia 13, ele se dividiu na tríplice jornada de visitar o Gantois,
a Casa Branca e o Ilê Axé Opô Afonjá.
Poeta, intelectual, escritor, cantor lírico e educador, ele é o responsável pelo jogo que indica os
representantes na sucessão para as grandes casas de candomblé da Bahia.
Foi seu jogo que nomeou mãe
Stella, para o Opô Afonjá, e Tatá, para a Casa Branca. Pelo apartamento de pai Agenor, no Rio, passam,
diariamente, dezenas de pessoas, incluindo artistas globais e políticos, que confiam a vida ao seu jogo
de búzios.
Natural de Angola, pai Agenor veio para a Bahia com 5 anos de idade. Ainda criança, recebeu, de
Eugênia Ana dos Santos, mãe Aninha, a vocação para o candomblé.
A vida do oluwô já foi registrada em
um livro, de Diógenes Rebouças Filho (Pai Agenor, editora Corrupio, 1997), e, agora, será tema do
documentário Um Vento Sagrado, com roteiro e direção de Walter Pinto Lima e Carlos Vasconcelos
Dominguez (este, morto no ano passado).
Nesta entrevista, concedida no último dia 16, antes de voltar para o Rio de Janeiro, pai Agenor
fala sobre sua concepção de candomblé, critica o sacrifício de animais, o jogo cobrado e a grande
exposição que a religião ganhou atualmente.
P - Quando e como surgiu sua vocação para pai-de-santo?
R - Não sou pai-de-santo, sou zelador-do-santo. O santo é que é meu pai. Eu acho esta
nomenclatura (pai-de-santo) muito errada. Eu zelo.
P - Qual é a diferença?
R - Se eu sou pai-de-santo, o santo é propriedade. Para mim, os orixás são fragmentos da
natureza. Cada orixá tem encantado um fator natural: Iansã, no vento; Iemanjá, no mar; Oxóssi, nas
matas, caçando; Ogum, desbravando estradas. Então, como eu posso ser pai deles? Quero que me
chame de zelador. Pai, não. O zelador trata dos orixás, faz, todas as semanas, uma obrigação, que se
chama ossé. Fazer ossé aos orixás é limpá-los, cuidá-los.
P - Como o senhor vê, então, a utilização da nomenclatura pai-de-santo pelo candomblé?
R - Eu já encontrei isso quando fiz santo. Eu é que não me sinto bem em dizer que sou pai-do santo. Para eles (algumas pessoas do candomblé), é uma glória dizer isso.
P - Voltando à sua vocação para zelador-de-santo, quando e como ela surgiu?
R - Eu tinha 5 anos. Na verdade, não fui eu quem procurou o candomblé, o candomblé é que me
procurou. Minha família era toda católica, apostólica, romana, nunca “assistiu” a um candomblé. Nasci
em Ruanda, capital de Angola. Vim para a Bahia com 5 anos. A vocação surgiu desde que eu nasci. Um
africano disse isso para minha mãe antes do meu nascimento. Ela não acreditou, mas ele acertou em
tudo.
Ela me esperava para outubro, ele disse que era para setembro. Eu nasci no dia 8 de setembro de
1907. Disse que eu ia trazer uma mancha vermelha na cabeça. Eu trouxe. Quando chegamos aqui, na
Bahia, eu fiquei para morrer. Os médicos desenganaram-me. Minha mãe Aninha, a que fundou o Axé
Opô Afonjá, fez o jogo e disse que eu não tinha nada, que era o orixá que iria ser feito. Fez-se o orixá,
em 1912, e eu estou aqui.
P - O senhor ocupa um dos mais altos postos no candomblé. Como atua um oluwô?
R - A mando dos orixás. Sem alarde e sem vaidade. Na realidade, o magistério é que foi minha
carreira. Trabalhei no magistério 47 anos, e saí com pena. Eu nunca vivi do santo. Eu vivo para o santo.
Até meu jogo de búzios, nunca cobrei. Não cobro, porque eu duvido um pouco dessa caridade cobrada.
Ela deixa de ser caridade quando é cobrada. Eu sou feliz, os orixás me deram essa missão, mas me
deram também uma profissão. Então, não há necessidade de eu cobrar.
P - Nesses seus 93 anos, houve algum fato, alguma experiência que o marcou? No candomblé, por
exemplo?
R - Diversos. Teve um episódio na minha casa, no Leme, no Rio, em 1947. Eu sonhei com Xangô
me dizendo que estava segurando a casa até eu me mudar, pois a casa iria desabar. Eu mudei às 5
horas. Às 7 horas, a casa desabou. Então, eu tenho que ter amor aos orixás. Não posso vendê-los, me
aproveitar.
P - Na Bahia do Senhor do Bonfim, o sincretismo religioso está muito presente. Qual a sua opinião
sobre o sincretismo, considerando que o senhor é um zelador-de-santo, filho de pais católicos?
R - Não há crime nenhum no sincretismo, porque, se não fosse o sincretismo, não haveria
candomblé hoje. Essa é que é a verdade. As mães-de-santo e os pais-de-santo não querem o
sincretismo. Mas tem que haver. Se não fosse o sincretismo, como é que o candomblé iria sobreviver
até hoje? Teria morrido. Agora, eles não gostam quando eu falo isso. Mas eu falo o que sinto. Não falo
pelos outros, falo por mim.
P - O senhor é devoto de Santo Antônio e de São Francisco de Assis e vai sempre à cidade de Assis,
na Itália, venerar São Francisco. Como é que o senhor lida com isso dentro do candomblé? Existe
preconceito?
R - Se há preconceitos, é com eles. Eu sou eu. Nunca tive conflito. E, agora, tem mais uma coisa:
eu sou do santo, católico e espírita. Assim como na família: nem todos são iguais, mas convivem bem.
Não é isso? É uma questão de fé.
P - Qual a diferença do candomblé do passado para o candomblé atual?
R - Bom, eu costumo, numa frase, mostrar: eu sou do candomblé de morim (pano de algodão
muito fino e branco). Hoje, é candomblé de lamê (plumas, lantejoulas). Parece uma escola de samba.
P - O sacrifício de animais, um dos ritos mais comuns e simbólicos do candomblé, é contestado
pelo senhor. Por quê?
R - Acho que é uma maldade. Os orixás, que são fragmentos da natureza, precisam de sangue?
Matar os animais que representam a natureza? Matar, além de tudo, com uma faca, devagarinho, com
cantiga, até chegar em uma palavra para tirar a cabeça do bicho. Não dá! Sou contra a matança. Na
vida, tudo evolui com o tempo. O candomblé podia ter evoluído um pouquinho, ser mais moderado. O
candomblé, hoje, é um luxo.
Obs.:
Nesta mesma época em que foi feita a entrevista para o “Jornal da Tarde 24/06/2001” realizou-se um documentário sobre a vida de Agenor Miranda, intitulado “Um Vento Sagrado”. O filme traz
depoimentos de personalidades, como o cantor Gilberto Gil e o escritor Muniz Sodré.
Olá, sou Anna Pon, autora deste blog.
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