Maria na Umbanda: entre santos e orixás
Maria na Umbanda: Entre Santos e Orixás
por Alexandre Cumino
1. Introdução
Maria, mãe de Jesus, vai muito além do Catolicismo e do Cristianismo, vemos sua presença em grandes
religiões como o Islã, onde ela assume o papel de mãe do profeta Jesus, no entanto é possível encontrar Maria
nos cultos ou religiões sincréticas das Américas.
O colonizador europeu trouxe o africano como escravo e
ambos se instalaram nesta terra do índio. Logo as culturas do branco, do negro e do vermelho se encontraram
de forma particularizada em diferentes regiões deste continente. E assim chegou Maria ao Brasil, onde foi
acolhida também pela religiosidade popular, associada e comparada com divindades e entidades do mundo
mítico afro-indígena.
Neste contexto está, também, a Umbanda, nascida da miscigenação tão brasileira, no
seu jeito de ser, fruto de mitos, ritos e símbolos os mais variados.
2. Objetivo
O objetivo deste estudo é ressaltar alguns pontos da presença de Maria na Umbanda. Verificamos um
sincretismo dinâmico.
“Maria Virgem” se identifica com Oxum e “Maria Mãe” se identifica com Yemanjá, em
que a relação santo/orixá varia segundo diferentes pontos de vista. Para além de um altar essencialmente
católico, podemos observar Maria em outros aspectos da liturgia, como a Festa de Yemanjá e a identificação
dos templos com nomes de santos.
Hoje a umbanda passa por uma mudança de paradigma, no que diz respeito a sua literatura, escrita de
“umbandista para umbandista”, surge uma literatura psicografada de umbanda e novas abordagens sobre a
relação de Maria na Umbanda. Sendo uma religião muito aberta e inclusiva acolhe diferentes e novas formas de
entender a presença de Maria. Vamos aqui apenas esboçar alguns aspectos, conscientes da complexidade da
Umbanda e dos diferentes ângulos que as Ciências da Religião nos oferecem para aprofundar a questão.
3. Maria na história da Umbanda
O primeiro templo de Umbanda de que se tem noticia traz o nome de “Tenda Espírita Nossa Senhora da
Piedade”, quem nos conta a história de sua fundação é o Sacerdote de Umbanda, Ronaldo Linares, Presidente
da Federação Umbandista do Grande ABC (FUGABC), criador do primeiro curso de formação de sacerdotes de
Umbanda.
1
Dia 15 de Novembro de 1908, Zélio Fernandino de Moraes, um jovem rapaz de 17 anos, incorporou o
espírito de Frei Gabriel de Malagrida, queimado na inquisição.
2 O espírito do Frei revelou que, em uma vida
posterior, nasceu como índio no Brasil, preferindo ser identificado, agora, como “Caboclo das Sete
Encruzilhadas” e que vinha para trazer a Religião de Umbanda. Sua “igreja” se chamaria Nossa Senhora da
Piedade, pois assim como Maria acolheu a Jesus, a Umbanda acolheria os filhos seus.
1 LINARES, TRINDADE e VENEZIANI, 2007.
2 É o próprio espírito de Gabriel de Malagrida, nesta mesma ocasião (LINARES, 2007. P.22), quem esclarece: “acusado de bruxaria, fui
sacrificado na fogueira da Inquisição por haver previsto o terremoto que destruiu Lisboa, em 1775.”. No dia posterior na residência do jovem
Zélio de Moraes, Gabriel de Malagrida, agora identificado como Caboclo das Sete Encruzilhadas, também teria previsto as duas guerras
mundiais, as bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki e a grande degeneração da moral.
Zélio vinha de uma família de origem católica e no seio deste lar tiveram início as sessões mediúnicas de
Umbanda, onde já havia um pequeno altar católico. Com o tempo, o espírito de um “preto velho”, escravo de
origem africana, “Pai Antônio”, traria o conhecimento dos orixás africanos associados aos santos católicos.
Nascia o sincretismo de Umbanda, Maria já estava presente e enraizada nos valores religiosos e espirituais
dessa família.
No decorrer dos tempos surgiriam milhares e milhares de Templos de Umbanda, identificados como
“tendas”, “centros”, “casa” ou “terreiros” de Umbanda, nos quais a exemplo da primeira “Tenda de
Umbanda”, estariam presentes as “Marias”, identificando estes templos como: “Tenda Nossa Senhora da
Conceição”, “Tenda Nossa Senhora da Guia”, “Nossa Senhora de Sant‟Ana”, “Nossa Senhora dos Navegantes” e
outras como “Estrela D'alva”, “Tenda Nossa Senhora Aparecida”, “Casa de Maria” etc.
4. Maria no altar de Umbanda
Oxum representa o amor, a pureza, a beleza, inocência e concepção, enquanto Yemanjá representa a
mãe universal, mãe dos orixás, aquela que mantém e gera a vida. Ambas se manifestam na água, Oxum nas
cachoeiras e Yemanjá no mar.
O sincretismo de Maria com os Orixás se faz notar principalmente no altar de Umbanda, que é um altar
composto por imagens católicas. Encontraremos a imagem de Nossa Senhora da Conceição ou de Nossa Senhora
Aparecida, fazendo sincretismo com Oxum. Yemanjá é o único orixá que tem uma imagem própria,
umbandista, não católica, assim mesmo encontramos sincretismo com Nossa Senhora dos Navegantes ou Nossa
Senhora das Graças.
5. Um olhar sociológico
Cândido Procópio Ferreira de Camargo, no final da década de 50, dedicou parte de seu tempo ao estudo
das “Religiões Mediúnicas” e registrou no livro “Kardecismo e Umbanda: uma interpretação sociológica”, o
resultado de sua pesquisa de campo, onde descreve um Terreiro de Umbanda:
“No „terreiro‟ propriamente dito, barracão com cerca de 50m², há um altar, semelhante aos católicos. O
„Orixá‟ guia do „terreiro‟ assume lugar de destaque, sob a figura do Santo Católico correspondente. São Jorge,
Nossa Senhora, São Cosme e São Damião são os Santos mais comuns que integram o altar, além do Cristo
abençoando, de braços abertos.”
Procópio Ferreira dedica especial atenção ao sentimento de pertença daquele que busca as “religiões
mediúnicas”, observando que boa parte dos frequentadores consideram-se Católicos.
Embora já tenha decorrido meio século e a umbanda venha mudando de perfil, na busca de identidade,
ainda nos dias de hoje observamos este fato em menor grau. Para evitar preconceito da sociedade ou
desinformação, alguns dos adeptos, da Umbanda, identificam-se de pertença espírita, não fazendo distinção
entre sua prática e a criada por Allan Kardec.
Ao adentrar um terreiro de Umbanda pela primeira vez, muitos o fazem com certo receio do
desconhecido, mas se deparando com um altar católico sentem-se confortados e tranquilos.
Jesus de braços
abertos e Maria a seu lado, junto com todos os outros santos, continuariam a guiar sua fé, agora ao lado da tão
popular Yemanjá.
O sincretismo, neste caso, serve de amparo para que o desconhecido se apresente através de elementos
já conhecidos. O Católico se sente à vontade para justificar sua pertença, assim como, fica clara a importância
do altar para a recepção e a conversão do novo adepto.
6. Festa de Yemanjá
O Próprio Zélio de Moraes fundou sete “Tendas de Umbanda” com nomes de santos católicos (LINARES, 2007. P.77).
4
SARACENI, 2008.
5 CAMARGO, 1961, P.44.
Na década de 50 foi criada uma imagem brasileira para Yemanjá, de pele branca, cabelos negros,
vestida de azul, pairando sobre o mar, seu vestido se funde às ondas e derrama pérolas pelas mãos. Esta é
uma imagem umbandista e, embora todos aceitem Maria como Yemanjá e Oxum, quase não se usa uma
imagem católica para Yemanjá, pois ela tem o privilégio de ter imagem própria.
Na Umbanda paulista desde 1969, realiza-se anualmente a Festa de Yemanjá, na Praia Grande, onde está
a tradicional imagem de Yemanjá, em Cidade Ocian. Recentemente, o município de Mongaguá, recebeu uma grande imagem de Yemanjá doada pela FUGABC.
A Rainha do Mar reina sozinha nestas duas praias do litoral sul paulista, sendo, dia 8 de Dezembro, dia de Nossa
Senhora da Conceição, a Festa de Yemanjá.
Já as comemorações de Oxum ficaram para o dia de Nossa Senhora
Aparecida e todo o resto do calendário umbandista é orientado por datas católicas, correspondentes aos santos
e orixás.
7. Quatro olhares para o sincretismo afro-católico na Umbanda
O olhar para o sincretismo assume diferentes aspectos dentro da Umbanda, devido à liberdade de
interpretações que existe dentro dela mesma. O umbandista tem diferentes formas de se relacionar com
Maria, que resultam em olhares diferentes para o sincretismo. Coloco aqui quatro olhares distintos:
O primeiro olhar é um “olhar católico”, de desinformação sobre a cultura afro. O recém
convertido ou o adepto ao ser questionado por exemplo, de quem é o Orixá Oxum ou Yemanjá responde
simplesmente que é Maria Mãe de Jesus. Não há um interesse pela cultura e a presença da divindade africana.
O segundo olhar é um “olhar afro” de desinteresse pelo Santo Católico, a presença do mesmo é
apenas figurativa para representar o Orixá, divindade que não possui uma imagem feita de gesso para ir ao
altar, com exceção de Yemanjá. Assim Nossa Senhora da Conceição ou Nossa Senhora das Graças está no altar
apenas como uma referência simbólica para se alcançar e louvar, quem realmente está lá, Orixá Oxum.
O terceiro olhar é um “olhar de fusão” pelo qual Maria, Oxum e Yemanjá se fundem, não há mais
uma e outra, Maria é Oxum e também Yemanjá. As lendas e os mitos se confundem e se apresentam nos
cantos, neles vemos “Maria a mãe dos Orixás”, “Maria filha de Nanã Boroquê, a avó dos Orixás” ou “Yemanjá
mãe de todos os santos”. Inclusive o conceito de santo e orixá se confundem. O adepto se expressa dizendo
“meu santo de cabeça é Oxum”, para esclarecer que este Orixá é o “dono de sua cabeça”, seu regente ou
padrinho.
Há ainda um quarto olhar, que é o “Olhar de convivência”. É um olhar que reconhece a afinidade
entre os Santos e Orixás, Nossa Senhora da Conceição tem sincretismo com Oxum porque ambas têm as
mesmas qualidades. Santo e orixá convivem juntos em harmonia, a qualidade e presença de um não diminui o
outro. Existem clareza e esclarecimento sobre a origem e cultura que envolve santo e orixá.
Oxum não é
Maria, mas ambas têm as mesmas qualidades e convivem juntas e em harmonia. Sozinhas elas já ajudam,
juntas ajudam muito mais.
8. Uma nova experiência de Maria na Umbanda
Já comentamos, linhas acima, que a religião de Umbanda vem mudando de perfil, buscando sua
identidade e, porque não, até mudando alguns paradigmas. Até alguns anos a literatura chamada de
“psicografada” ou “escrita mediúnica”, pela qual os espíritos dão sua mensagem escrita, eram de
característica do Espiritismo “Kardecista”. Nos últimos anos vem se observando uma literatura “psicografada
de Umbanda”, ou seja, livros de Umbanda escritos de forma mediúnica.
Essa mudança de paradigma deve-se a um autor umbandista, Rubens Saraceni, que já publicou mais de
50 títulos nos últimos 13 anos, o que vem incentivando outros umbandistas a realizarem a mesma experiência.
SARACENI e XAMÃ, 2003.
O autor psicógrafo, médium e sacerdote de Umbanda, Rubens Saraceni, criou o primeiro curso livre de
“Teologia de Umbanda”, para estudar de forma teórica e teológica as questões pertinentes à Umbanda, vista
de dentro.
Na “Teologia de Umbanda” se reconhece que Deus é Um com muitos nomes diferentes, como Alá,
Zambi, Tupã, Olorum, El, Adonai, Jah, Javé, Aton, Brahman, Ahura Mazda8
entre outros. Da mesma forma os
diversos “Tronos de Deus”, “Divindades” ou Deuses se manifestam em várias culturas, “à moda” de cada uma
delas. Assim o “Trono Feminino do Amor” ou “Divindade feminina do Amor” é conhecida como Oxum, Isis,
Lakshimi, Afrodite, Vênus, Hebe, Kwan Yin, Freyija, Blodeuwedd, entre outros nomes, sendo a mesma,
manifesta sob diferentes formas.
Maria personifica este trono na cultura católica, portanto seu sincretismo
com Oxum torna-se natural, legítimo e Justificado. Maria tem as qualidades do “Trono Feminino do Amor” e do
“Trono Feminino da Geração”, como Yemanjá, Tétis, Hera, Parvati, Danu, Friga e outras. Todas as divindades
convivem juntas e se expressam de muitas formas, lembrando a ideia das “Máscaras de Deus”.
Conclusão
Podemos ainda lembrar que Maria ocupa o posto que antes pertencia às “Deusas Pagãs”. O Catolicismo
fez sincretismo de culturas e valores, durante sua expansão por territórios desconhecidos ao cristianismo.
Podemos dizer que a Deusa também está no inconsciente coletivo que busca elementos conhecidos para
concretizar-se em uma realidade palpável.
Por fim, podemos dizer que onde houver duas ou mais culturas haverá sempre o sincretismo, que marca o
encontro entre elas.
Maria faz parte de uma cultura que dominou todo o Ocidente e boa parte do Oriente. No
mundo pós-moderno e globalizado, cada vez mais encontraremos sincretismos e associações a Maria.
Independente de como possa ser interpretada, concluímos que Maria faz parte da Religião de Umbanda e
se manifesta de formas diferentes dentro desta mesma religião.
*Alexandre Cumino é presidente do Colégio de Umbanda Sagrada Pena Branca, Diretor da Associação
Umbandista e Espiritualista do Estado de São Paulo, Sacerdote de Umbanda, ministrante dos cursos livres de
“Teologia de Umbanda Sagrada” e “Sacerdócio de Umbanda Sagrada”, editor do Jornal de Umbanda Sagrada e
estudante de Ciências da Religião na Faculdade Claretiano.
Bibliografia:
BASTIDE, Roger. As Religiões Africanas no Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo e
Editora Livraria Pioneira, 1971.
CAMARGO, Candido Procópio Ferreira de. Kardecismo e Umbanda: Uma Interpretação Sociológica. São
Paulo: Editora Livraria Pioneira, 1961.
CUMINO, Alexandre. Deus, Deuses, Divindades e Anjos. São Paulo: Editora Madras, 2008.
LINARES, Ronaldo; TRINDADE, Diamantino e VENEZIANI, Wagner. Iniciação à Umbanda. São Paulo: Editora
Madras, 2007.
SARACENI, Rubens. Orixás: Teogonia de Umbanda. São Paulo: Editora Madras, 2005.
SARACENI, Rubens e XAMÃ, Mestre. Os Decanos: Os Fundadores, Mestres e Pioneiros da Umbanda. São
Paulo: Editora Madras, 2003.
SARACENI, Rubens. Doutrina e Teologia de Umbanda. São Paulo: Editora Madras, 2008.
Eis uma das razões pela qual o católico se sente a vontade na Umbanda. Mesmo seguindo sua religião, se sente acolhido na Umbanda por conta do sincretismo e até das semelhanças na interpretação sobre quem é Deus e quem são os Santos.
A forte e doce presença de Maria, mãe de Jesus, se projeta nas Orixás femininas acalentando assim o coração do fiel católico.
Maria, na visão Umbandista, merece todo o respeito e pode tranquilamente transitar pela religião não apenas nas figuras das Orixás, mas na sua própria, tão única e divina.
Umbandista crê em Deus, em Jesus, em Maria e em José, além dos Orixás e espiritualidade.
Anna Pon
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