Preto Velho e a liberdade


Preto Velho e a liberdade

Libertar do cativeiro, nos tempos da escravidão, não foi fácil. Foi um processo. Envolveu muita gente dita de bem e respeitável, afrontou interesses, mas, de alguma forma, atendeu à interesses velados, tramados nas sombras porque o cativeiro, embora abolido, voltaria revestido de "trabalho remunerado".

E as pessoas, escravizadas, agora "libertas", por lei, perambularam pelas ruas enfrentando toda a sorte de dificuldades, tempos difíceis, doloridos, parecia que a chibata nunca seria abolida junto com a escravidão.

Muita gente passou fome, humilhação. Alguns até quiseram voltar ao cativeiro porque não se sentiam livres. Falta de amparo, socorro, continuou a manter o negro à margem literalmente. Mesmo os que, pela mistura, aparentavam brancura, sofreram a discriminação, o abandono.
Mães com seus bebês, velhos, jovens, todos livres, mas, sempre escravos, recebiam alguns trocados pelo trabalho duro e não menos cruel do que nos tempos da escravidão.

O resultado foi uma enorme concentração de pessoas sem teto ocupando o espaço livre, construindo, com suas mãos, algo parecido com uma moradia. A abolição da escravatura custou caro em termos práticos, mas, sabemos que era o primeiro passo para a libertação de fato desse povo tão sofrido feito escravo em nosso país. Página sombria de nossa história que não deve ser esquecida para que nunca mais se repita.

Hoje, quando pensam em Preto Velho, logo vem à lembrança o negro escravizado, mal tratado, jogado para fora da sociedade. Isso também é um tipo de cativeiro, permanecer preso a um arquétipo, muito embora, na Umbanda, essa linha de trabalho é, de certa forma, uma homenagem àqueles que sofreram nesse chão chamado Brasil e na imensa falange espiritual, alguns estiveram sim por aqui vivendo uma encarnação no regime da escravidão, só lembrando, porém, que não todos, pois existem muitos Pretos Velhos brancos, amarelos e vermelhos entre nós, trabalhando no grau de Preto Velho em nossa Aruanda.

Libertar do cativeiro é, portanto, se livrar de velhos conceitos, pré-conceitos, padrões equivocados de comportamento. É dessa libertação que Preto Velho vem hoje nos falar porque não se libertou apenas da escravidão, se libertou de tudo o que se opõe ao bem da humanidade, da coletividade e, se hoje, maio de 2020, um vírus obrigou as pessoas a se isolarem, pensem em como era a privação da liberdade pela escravidão. Se pensarmos bem, muito direitinho, veremos que não é nada em comparação.

Da África trouxeram suas experiências, vivencias, religiosidade e aos poucos se libertaram de antigas necessidades, ou formas de entender a vida e seus processos, por isso Preto Velho nos fala hoje, através da mediunidade, que é preciso humildade, compaixão, perdão. 

O perdão, porém, é muitas vezes interpretado como voltar a confiar, ou ainda, voltar às boas, com quem se perdoa, esquecendo toda a ofensa ou mal entendido, porém, Preto Velho nos diz que não é bem assim, que não podemos alcançar, de uma hora para a outra, tal evolução porque estamos em processo; evoluindo aos poucos e a passos lentos. Basta não desejar o mal a ninguém, basta não remoer velhos assuntos, basta não remexer feridas nem espetar cicatrizes, basta permitir que o outro vá em paz para que em paz você permaneça, basta nada falar de ruim sobre ninguém, ou seja, basta se abster da maledicência permanecendo o máximo de tempo possível na segurança do silêncio.

Trabalho é o ponto  forte de Preto Velho porque, durante a vida, trabalhou muito, mas, não apenas ao trabalho braçal me refiro, mas, ao trabalho interno de vencer a si mesmo vencendo as sombras que rondam o íntimo de cada um de nós. Preto Velho venceu essa batalha, portanto, Preto Velho se libertou.

E nesse momento de tão grande sofrimento e insegurança que nos ronda por conta da pandemia, a Preto Velho pedimos que, a seu exemplo, tenhamos fé, força para passar por esta prova coletiva colaborando uns com os outros, confiando nos desígnios de Deus que sabe o que é melhor para cada um de nós, seus filhos.

No último dia 13 homenageamos na Umbanda a todos os pretos e pretas velhas que tanto nos ajudam nessa jornada de vida e, ao mesmo tempo, diante da situação que estamos vivendo, refletimos, ao pensar neles, que somos pouco pacientes, que nossa fé é muito frágil e que a vida é mesmo um sopro, que só venceremos juntos, irmanados e colaborando da melhor maneira dentro de nossas possibilidades com o bem comum.

Refletimos ainda sobre como é poderosa a oração, a união de corações em prece e em quanto tempo perdemos com futilidades ou competições sem nenhuma razão de ser.

Preto Velho vem nos dizer, nesse e em todos os momentos, que é preciso ter coragem para deixar ir o velho para que o novo venha e se estabeleça. Que é preciso antes libertar a si mesmo de tantas coisas que já não servem mais para nada, e depois, então, quem sabe, ajudar a alguém para que faça o mesmo e se liberte de seus cativeiros internos e externos.

Liberdade é ter responsabilidade.

 Anna Pon

15.05.2020


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